domingo, 24 de outubro de 2010

Inscrição

Quem se deleita em tornar minha vida impossível
por todos os lados?
Certamente estás rindo de longe,
ó encoberto adversário!

Mas a minha paciência é mais firme
que todas as sanhas da sorte:
mais longa que a vida, mais clara
que a luz no horizonte.

Passeio no gume de estradas tão graves
que afligem o próprio inimigo.
A mim, que me importam espécies de instantes,
se existo infinita?

Cecília Meireles, in 'Retrato Natural'


Nota:
Dedico este poema a todos os tristes que, ao longo da minha vida, tiveram o prazer de me magoar.
JC

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Retrato de Mulher Triste




Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.

Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.

Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.

De mansinho





Chega sempre tímida e de mansinho.
Traz cores suaves
Odores subtis
Cores envolventes.

Chega... e namora-me.
Seduz-me quase à distância.
Sorri-me veladamente
E finalmente conquista-me!

Oh que fraca sou
Que a conheço e me deixo envolver!
Sei que ela me quer
Mas também sei que me magoa
Uma vez
E outra
E outra ainda, repetidamente!

Mas não lhe resisto
Pois, estranhamente, ela conhece-me,
acarinha-me,
Seca-me as lágrimas que me fomenta.
Gosta de mim à sua maneira...
Experimenta até não me ferir
Com as suas garras escondidas...

Mas também não me resiste
A mim
Sempre exposta e provocante
Ondulando as ancas em cada silêncio
Sacudindo os cabelos ao vento em cada lembrança
Fazendo-lhe olhares gulosos em cada pensamento!

E depois... sei que me faz companhia,
Que por algum tempo
Quebra a minha solidão
E num rasgo de paixão e loucura
Abro-lhe os braços e digo:
"Estou aqui! Entra dentro de mim!"

Depois.... depois é a fusão
E as duas, unidas
Fazemos uma só.
De que me queixo então?
Da sua companhia
Ou da dor que me provoca?
Da sua insistência
Ou da sua arrogância?!

Aceito-a, de novo em silêncio.
Talvez precise da sua dor
Para me purgar
E deixo-a habitar em mim
Até ela querer, até eu
Frágil mas persistente
A expulsar, de novo
Uma vez e outra,
E outra...
Para finalmente lhe poder dizer:
"Adeus tristeza,
Até depois!!"

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Ausência





Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Criogenizados




Estão a congelar tudo em nós!
Aconselho, em alternativa, algo de mais duradouro e permanente: a criogenia!

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Cume da montanha





Está a chegar ao fim o meu tempo
Pois estou a atingir o cume
De uma montanha que escalei
Solitária,inglória e arduamente.
Não posso voltar para trás
E tentar recuperar o tempo
Perdido em viver erradamente
Desperdiçado com coisas supérfluas
Porque estas veredas têm apenas um sentido.

Exausta com as lutas travadas,
As derrotas sofridas,
As intenções falhadas,
As acções, frustradas,
Estou a deixar caídas no meu trilho
Todas as coisas que possuía,
Tudo o que sempre me acompanhou
Nesta caminhada solitária.
Mesmo os sonhos foram tombados,
Quebrados, um a um.

Estou a perder o meu tempo,
O meu querer, os meus objectivos
E agora
A minha única ânsia
É chegar ao topo
E esperar que ela me leve
Depressa e indolor...
Mas seja como for
Certamente doerá menos
Do que esta dor de viver.

Estou, finalmente, a chegar ao fim.










"Perderei a minha utilidade no dia em que abafar a voz da consciência em mim".


Mahatma Gandhi

domingo, 10 de outubro de 2010

Lembro-me agora...





Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”

domingo, 3 de outubro de 2010

À morte







Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.
Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.
Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera... quebra-me o encanto!

Poema



Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Poema ao luar














É à noite que me fazes falta,
Tu, a ti, que eu nunca tive,
Que eu nunca conheci,
Para dançarmos juntos
A dança da noite
E desfrutarmos em conjunto
A Lua, deusa das pérolas invisíveis.

É a ti que eu quero,
Forte e seguro,
Mas frágil e terno,
De asas transparentes
E corpo viril e ágil.

Quero que precises de mim também,
Quero que me deixes amar-te
Mas principalmente
Quero que me ames e protejas
Me vejas como a tua prioridade
Me encantes com o teu olhar sincero
Com os teus gestos meigos
Ou com a tua pálida vaidade.

Quero-te nos meus intermináveis fins-de-semana
Para que estes não sejam tão solitários e opacos.


Quero-te na minha vida,
Não como um estorvo, mas como um cúmplice
Não como um opositor, mas como um amigo
Não como um juiz, mas como um advogado
Não para me enterrares, mas para me puxares do fundo,
Sempre que eu, fraca e sentimental
Me deixe atolar no inevitável lodo cíclico da vida
Ou me embrenhe no abismo rochoso da exclusão.

Quero-te ao meu lado,
Para ouvires as minhas gargalhadas,
Mas também para me limpares as lágrimas,
Me aconchegares a roupa, quando eu tenho frio
Ou me refrescares, quando eu transpiro em demasia.

Quero-te junto a mim, para poderes rir comigo
Das insânias que digo com inocência,
Ou dos meus actos desajeitados
Ou ainda quando me enfeito de colares coloridos

Quero-te por perto,
Para poder ver e partilhar os teus sorrisos, as tuas lágrimas,
Os teus olhos parados e perdidos,
Ou ouvir as tuas palavras sem sentido.

Quero-te próximo de mim,
Para juntos construirmos o que nos resta da vida
Porque com meio século
Ainda se podem iniciar construções.

Quero-te nas noites e dias de Inverno,
E nos dias e noites de Verão,
Antes, durante e depois do solstício.

Sei que não existes, porque não te conheço
Mas eu sonho-te.
E é o meu sonho que te edifica,
Que te dá corpo
E que me dá esperança em tons de violeta
Em cada onda que lambe os meus pés,
A cada sete ondas que rebentam junto de mim.

Procuro-te há anos a fio,
E um dia, sei que te hei-de encontrar
Talvez já não seja aqui, neste mundo
Mas prometo-me que não vou desistir.

Quero-te!!
Sou leviana por te querer?
Arrebatada por te inventar?
Talvez
Mas este Mar que me banha e encanta
Ainda um dia me há-de trazer
Um colar de mil pérolas
Vindas do mar do oriente
E tu, virás nele agarrado
Para me tornares a rainha de todas as fadas.
Quero-te, simplesmente!