quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Foto retirada da net
A Criança que fui chora na estrada,
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,

Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.


Fernando Pessoa, 22-9-1933
In Poesia 1931-1935 e não datada , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2006

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Dá-nos a Tua paz


Dá-nos a Tua paz,
Deus Cristão falso, mas consolador, porque todos
Nascem para a emoção rezada a ti;
Deus anti-científico mas que a nossa mãe ensina;
Deus absurdo da verdade absurda, mas que tem a verdade das lágrimas
Nas horas de fraqueza em que sentimos que passamos
Como o fumo e a nuvem, mas a emoção não o quer,
Como o rasto na terra, mas a alma é sensível...
Dá-nos a Tua paz, ainda que não existisses nunca,
A Tua paz no mundo que julgas Teu,
A Tua paz impossível tão possível à Terra,
À grande mãe pagã, cristã em nós a esta hora
E que deve ser humana em tudo quanto é humano em nós.
Dá-nos a paz como uma brisa saindo
Ou a chuva para a qual há preces nas províncias,
E chove por leis naturais tranquilizadoramente.
Dá-nos a paz, porque por ela siga, e regresse
O nosso espírito cansado ao quarto de arrumações e coser
Onde ao canto está o berço inútil, mas não a mãe que embala,
Onde na cómoda velha está a roupa da infância, despida
Com o poder iludir a vida com o sonho...
Dá-nos a tua paz.
O mundo é incerto e confuso,
O pensamento não chega a parte nenhuma da Terra,
O braço não alcança mais do que a mão pode conter,
O olhar não atravessa os muros da sombra,
O coração não sabe desejar o que deseja
A vida erra constantemente o caminho para a Vida.
Dá-nos, Senhor, a paz, Cristo ou Buda que sejas,
Dá-nos a paz e admite
Nos vales esquecidos dos pastores ignotos
Nos píncaros de gelo dos eremitas perdidos,
Nas ruas transversais dos bairros afastados das cidades,
A paz que é dos que não conhecem e esquecem sem querer.
Materna paz que adormeça a terra,
Dormente à lareira sem filosofias,
Memória dos contos de fadas sem a vida lá fora,
A canção do berço revivida através do menino sem futuro,
O calor, a ama, o menino,
O menino que se vai deitar
E o sentido inútil da vida,
O coveiro antigo das coisas,
A dor sem fundo da terra, dos homens, dos destinos
Do mundo...
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 25.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Nem pedras nem castelos

Foto retirada da net - Autor desconhecido
Já não preciso de mais pedras
Para construír castelos
Pois construtora e proprietária
De muitos já sou;

Também não quero mais desgostos
Pois uma torre enorme
Já tenho com eles edificada;

De lágrimas de dor
Também não preciso
Porque um rio já corre à minha frente
Com elas nascido
Rio revolto, desgovernado,
Sem margens respeitar
Sem limites querer ter;

De mais desprezo não careço
Pois transparente me tornei
E os castelos edificados
Foram construídos numa ilha
No meio do meu rio...
E ruiram.

De vexames também não
Pois mesmo vexada
Surgem de quando em quando
Flechas que me perfuram
Sendo eu o alvo mais fácil de todos.
Perfurada, perdida, isolada, ferida,
desarmada é fácil ser-se alvejada.

Não preciso de aqui estar.
Não quero cá permanecer.
Não há motivos nem pessoas
Para o merecer

Já me fui... há muito que Eu já não sou
Espero apenas o momento
De este corpo abandonar e,
Finalmente, na eternidade, poder descansar.

Ai, que cansaço!
Ai, que desilusão!


JC - Inédito



segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Bem sei que estou endoidecendo



Foto retirada da net


Bem sei que estou endoidecendo.
Bem sei que falha em mim quem sou.
Sim, mas, enquanto me não rendo,
Quero saber por onde vou.
Ainda que vá para render-me
Ao que o destino me faz ser,
Quero, um momento, aqui deter-me
E descansar a conhecer.
Há grandes lapsos de memória,
Grandes parábolas perdidas,
E muita lenda e muita história
E muitas vidas, muitas vidas.
Tudo isso, agora que me perco
De mim e vou a transviar,
Quero chamar a mim, e cerco
Meu ser de tudo relembrar.
Porque, se vou ser louco, quero
Ser louco com moral e siso.
Vou tanger lira com Nero.
Mas o incêndio não é preciso.
Fernando Pessoa In Poesia 1931-1935 e não datada , Assírio & Alvim,
 ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2006

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Asas de Ícaro

Cresceram-me umas asas de Ícaro
Imagem retitada da net
Para quando o chão me falta
Debaixo dos pés
Mas começa a ser tão frequente
Que já não sei se sou
Pássaro frustrado
Ou simples humano derrotado!

As dores doem-me tanto
De novas e diferentes que são
Que não há voo
Não há marcha
Não há navegação
Que mitigue esta situação.

Disseram-me que não havia
Nada mais de mau
A poder sentir
Que já tinha experienciado
Todos os maus sentimentos.
Mas eis que se lembram
Que ainda podia sofrer
Um pouco mais
E inventam
Um novo padecimento.

E as asas derretem
Do voo alto que levaram.

Caio então estatelada numa realidade
Em más experiências cimentada.

Rebento de aflição
Expludo de ansiedade
Esvaio-me em depressão
Estilhaço-me de tristeza
Porque tudo deixa de fazer sentido
Tudo precisa de ser repensado
Talvez reprogramado
Talvez reaprendido...
Quem sabe, esquecido!


JC - Inédito

sábado, 26 de julho de 2014

E agora?

Imagem retirada da net (autor desconhecido)
E agora... e agora?
Tu mostras um ar alegre
Sem o conseguires estar
Tu sorris
Quando queres chorar
Tu vestes o mais lindo fato
Quando só de andrajos consegues andar.

Alimentas a tua falácia
A tua auto-estima
Sobre linhas construida
Mostras ao mundo
O que nem sempre acreditas
E maldizes as tuas benditas.

Já nem consegues agradecer
O pouco que de bom tens
Será pouco, ou será muito
Neste mundo materialista
Nada é
Mas se falares de outros bens
És considerado feliz
E não haverá ser lúcido
Que o desdiz.

Mas a outra realidade
Para outra dureza te acorda
E é esta a tua dualidade
É esta a tua interior discórdia
É este o motivo do teu sofrimento
É este o momento do teu recolhimento
É este o momento do teu aniquilamento
Para o qual,
De tanto quereres,
De tanto te esforçares
Um pequeno monstro pariste.

E agora... agora que meio mundo viste
A dor é mais dilacerante
Qualquer atitude mais acutilante
E o conseguir Estar
Cada vez menos apaziguante.

E depois... depois mostras o teu ar alegre
Um sorriso de olhar triste
Uma palavra de alento
Sem verdadeiro sustento
E uma atitude de confiança
Onde, no fundo, existe tudo
Menos, no Futuro, esperança!

JC - Inédito

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Tempestade

O vento soprou forte
Foto retirada da internet
O Rio de azul se fez cinzento
Provocou ondas de morte
E a Natureza perdeu o seu tento.

Voaram barcos, nadaram brancos carneiros
A terra fez-se rio
E o rio engoliu  Peixeiros
Que, impotentes, feneceram de frio.

Ia alta a madrugada
Quando a noite  finalmente acalmou                 
Chegou tarde, a maré menos fustigada
E os corpos, à areia triste, tornou.

Carpiam com as mulheres
Que já sabiam o que estava p’ra acontecer
Ainda assim, em uníssono gritaram
Quando os vultos viram aparecer.

E é esta a vida das gentes
Que, ribeirinhas, do seu sustento vivem
Faça chuva ou vente
Faça sol ou tempo quente.

Muito fácil demonstra ser
Muito bonito, parece o seu viver
Mas nem tudo é o que se vê

Nem tudo parece o que é...

JC - Inédito

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Talvez

Depois do vazio, há mais vazio
Depois do silêncio, há mais silêncio
Depois da perda, há mais perda
Depois da solidão, há mais solidão.

Assumi que no vazio, não faria mais frio
Assumi que o silêncio fosse substituído por palavras
Assumi que a perda deixasse de doer
Assumi que a solidão fosse preenchida... apenas preenchida.

Presunção a minha
Quando, sem me aperceber,
Deixei de aprender
E perdi tudo o que tinha.


Mudei-me então para a minha Ilha
Situada no deserto lunar
Onde a distância dos outros é tão grande
Que ninguém lhe consegue chegar.

E embora saiba onde estou
O que quero ser e para onde pretendo ir
Por vezes sinto-me à deriva
Sem nenhum porto seguro onde ancorar
Para, depois de restabelecida,
Poder voltar a partir.


Não. Afinal o silêncio foi quebrado
Por ferozes raios e trovões
Tudo foi preenchido e transformado
Em lugar de medo e confusões.


Continuam a entrar, sem que os consiga tolerar
Procissões de adversidades para ultrapassar.
Não são minhas, não as quero!
No entanto, foram elas que me vieram presentear.


Fui consumida pelo cansaço
A energia deu lugar à exaustão
Assim, não quero ser eu.
Deste modo, quero ser qualquer outra.


Tudo é já passado.
Quero O futuro.
Que venha ele.
Adeus presente.
Adeus vazio.
Adeus, adeus para sempre!

JC - Inédito

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

“Não chores pelo que perdeste, luta pelo que tens.
Não chores pelo que está morto, luta por aquilo que nasceu em ti.
Não chores por quem te abandonou, luta por quem está contigo.
Não chores por quem te odeia, luta por quem te quer.
Não chores pelo teu passado, luta pelo teu presente.
Não chores pelo teu sofrimento, luta pela tua felicidade.
Com as coisas que vão nos acontecendo vamos aprendendo que nada é impossível de solucionar. Apenas tudo segue em frente.

Jorge Mario Bergoglio