quarta-feira, 24 de março de 2010

Mesmo que não queiras...


Mesmo que não queiras
Vais lembrar-te de mim
Em cada beijo não dado
Em cada carinho não recebido
Em cada gargalhada não ouvida.
Mesmo que não queiras
Vais lembrar-te de mim.

Vais lembrar-te de mim
Em cada lugar que passares
A cada esquina que cruzares
A cada perfume que sentires
A cada som que ouvires.
Mesmo que não queiras
Vais lembrar-te de mim.

Vais lembrar-te de mim
Mesmo depois das provas destruídas
Mesmo depois das cartas rasgadas
mesmo depois das ofertas devolvidas
Vais lembrar-te de mim.

Mesmo que não queiras
Vais lembrar-te de mim
Por cada mentira que disseres
Por cada inverdade que pensares
Por cada traição que fizeres
Vais lembrar-te de mim.

Vais lembrar-te de mim
A cada beijo que roubares
A cada mulher que seduzires
A cada carícia que fizeres.
Mesmo que não queiras
Vais lembrar-te de mim.

E quando o tempo levar para longe
Todas as marcas que o amor deixou
Virá o arrependimento
Porque sem mim, ficou-te o vazio
Cada dia se tornou mais longo e frio.
E mesmo que não queiras
Vais lembrar-te de mim.

Mesmo que não queiras
Vais lembrar-te de mim
Porque eu estive em ti
E esse foi o legado que te deixei
Mesmo que não queiras
Vais lembrar-te de mim.
Vais lembrar-te de mim!

segunda-feira, 22 de março de 2010

Crónica de uma morte anunciada - II


«Embora já pertencesse à era da informática, não conseguia fazer upgrades com facilidade.
Certamente que lhe faltavam alguns módulos pois a sua incompatibilidade com o que a rodeava era cada vez maior.
Era de uma simplicidade pouco usual na sua idade mas essa simplicidade advinha da sua forma de ser e estar no mundo.
Não gostava do espampanante nem do sofisticado tendo, contudo, um quê de requinte no seu Ser.
Não se regia pelas muitas regras de etiqueta, que não dominava: por exemplo, não queria saber dos muitos talheres à volta dos pratos ou dos copos de diferentes tamanhos nem para o que se destinavam.
Era-lhe igualmente inútil saber qual a qualidade e a quantidade de vinho a ingerir durante e após a refeição.
Dispensava os empregados pois considerava que eles iriam quebrar a sua privacidade e entrar no seu espaço vital, na sua intimidade.
Tinha uma atitude prática perante a vida e perante a sociedade.
Houve porém quem de mansinho se imiscuísse na sua vida e tivesse simulado gostar de si e da sua forma de ser e de estar. E também de mansinho conquistou o que ainda restava do seu coração a pretexto de gostar dela tal como ela era mas, sobretudo, por amar a sua singularidade.
À medida que o tempo foi passando a proximidade entre ambos foi aumentando e, apesar de, por vezes, ele se mostrar desconcertado com a objectividade dela, afirmava-lhe um amor cada vez maior, desmesurado mesmo.
Reticente, ela abriu-lhe as suas portas, as suas e as de sua casa, passando ele a ser frequentador das mesmas.
Só que havia indícios, sinais... algo que não batia certo.
E, na noite de um dia, aparentemente de felicidade, tudo mudou.
Fora de portas e à socapa, ele mostrou que a tinha roubado e, num ápice, violou-a!
Não havia nada a fazer.
Por entre gritos e dor, ela barafustou, mas era tarde.
A sua simplicidade bronca permitiu a entrada de alguém vil e sem escrúpulos numa existência rotineira e honesta, que era a sua.
A violação tinha doído, dilacerando-lhe todo o seu interior; o roubo tinha-a despojado do que era seu deixando-a completamente desnudada.
E então ela decidiu fazer justiça, com as suas próprias mãos e de forma tão directa, que tudo se resolveria também de forma súbita... da mesma forma súbita com que ela tinha acordado para a realidade.
E matou-o.
Matou-o ali, naquele momento em que descobriu a fraude.
Matou-o dentro de si, tentando fazer com que a memória o acompanhasse, sem dó, cruelmente, sem perdão.
Matou-o e virou-lhe as costas para sempre, fazendo-o de maneira prática e decidida.
Castigo? Justiça? Perdão? Certamente que aconteceram, certamente que acontecerão.
Pela primeira vez ela fez um upgrade bem sucedido.
Ele? Permanece morto. Morto e enterrado na história pessoal daquela mulher.»