
Deram-me "isto" e foram-me dizendo que era EU, que ele me pertencia.
Fui assistindo ao seu crescimento, às suas constantes transformações, mas nunca me habituei, nunca me foi confortável, agradável nem me esteve ajustado de forma a que me identificasse a 100%.
Pelo contrário pois a maior parte do tempo desagradou-me, agrediu-me, machucou-me, aprisionou-me e limitou-me...
Sempre considerei que tinha havido uma troca, involuntária claro, um qualquer engano por parte de alguém.
Mas também com o passar do tempo percebi que ninguém terreno tinha qualquer tipo de decisão nessa escolha, nesse sentido.
Continuei a não estar de acordo, mas, sem alternativa, nada mais me restou a não ser continuar dentro dele, não lhe dando grande relevância, mas tentando tratá-lo cuidadamente de forma a minimizar o constante incómodo que ele me causava.
Menina, adolescente, jovem mulher, jovem mãe, mãe, mulher, mulher madura... agora quase avó e o mesmo incómodo constante, inevitável, indesejável.
Tantas transformações, cortes de cabelo, cremes e maquilhagens... quantas dores, rugas, cabelos brancos e sofrimento. Alegrias? Prazeres? Alguns, certamente mas sempre com contrariedade, com uma aparente e fingida aceitação...
Sempre considerei ser muito mais do que o que ele mostrava ao mundo, mas agora, tantos anos dentro dele, pouco consegui fazer, pouco consegui mostrar que pudesse e viesse contrariar a minha inocente teoria de que ele não me pertencia, de que ele não me pertence ainda, de que ele não me pertencerá nunca!
No entanto, mesmo sem provas, sem factos concretos que possam ser analisados, continuo a dizer e a sentir que EU sou mais do que este Corpo que me incomoda cada vez mais até porque se está a deteriorar, até porque está a ser cada vez mais inconveniente e menos funcional, até porque dói, até porque se está a deformar, até porque ganhou peso, até porque já nem reage às manobras de makeup, às pinturas capilares...
Decididamente, Eu sou mais do que "isto", do que este invólucro no qual fui colocada.
Talvez haja uma altura em que ele não me vai fazer falta; talvez, posteriormente passe a uma fase em que ele deixa de fazer sentido e então, finalmente, me sinta liberta e livre para poder ser apenas EU.